A Cura de Gaia

Gosto do conceito de Gaia, a Terra Viva. Gosto principalmente porque oferece uma forma de ver nosso mundo como um ser vivo sem precisar apelar para qualquer explicação mística. Gosto porque mostra nosso mundo como realmente é: vivo e frágil, suscetível a nosso venenos mas com seus mecanismos de defesa. Gaia tem o seu "sistema imunológico" e fará todo o possível para se manter saudável.

Um de seus muitos mecanismos de defesa é o controle de temperatura. Este sistema é complexo, mas fascinante. Uma das ferramentas para esse controle são as geleiras polares e de montanha. A água é uma substância fascinante. Uma de suas muitas propriedades é sua elevada capacidade térmica. A água é capaz de conter 5 vezes mais calor que o alumínio e 10 vezes mais que o aço. E o dobro da capacidade do gelo.  Além disso, enquanto para elevar em 1ºC a temperatura de 1 kg de água são necessários 4180 Joules, para derreter esta mesma quantidade de gelo a 0ºC são necessários 334.000 Joules. Portanto, derreter gelo é difícil. Se for devidamente acondicionado, o gelo pode até não derreter por muitos anos. Por isso, uma grande quantidade de energia pode ser absorvida pelo gelo. Além disso tudo, a superfície clara do gelo reflete de volta para o espaço grande parte da energia que vem do Sol. As calotas polares são o nosso sistema de ar condicionado.

Um dos argumentos usados pelos críticos do aquecimento global é justamente o fato de que, nos últimos anos, o clima aparentou mostrar uma pequena inversão na tendência de aquecimento, com invernos rigorosos tanto no hemisfério Norte como no Sul. Curiosamente, durante esta época de invernos rigorosos, a taxa de derretimento das geleiras apresentou velocidade acima da média. Isso não é coincidência. Na verdade, este derretimento faz parte do mecanismo de controle de temperatura terrestre, pois cada quilograma de gelo derretido retira do ambiente uma grande quantidade de energia. Contudo, isto não é motivo para que fiquemos despreocupados. O mecanismo de controle está funcionando, mas está sendo levado ao limite. Isso porque à medida que os gelos se derretem, há um escurecimento da superfície da Terra, com o consequente aumento da absorção do calor solar e do derretimento de novas massas de gelo.

Nosso corpo também possui mecanismos de controle de temperatura. Quando nosso corpo está muito quente, inicia-se o processo de transpiração. Parte da água do nosso corpo é liberada através dos poros da pele. A evaporação desta água resfria nossa pele. Isso ocorre porque a energia necessária para evaporar a água é ainda maior do que aquela necessária para derreter o gelo (2.260.000 Joules por Kg) O calor do corpo é usado para evaporar a água, tornando-o mais frio no processo. Em algumas situações, este controle pode falhar. Se uma pessoa ficar por períodos prolongados sob o sol forte, a água da transpiração evaporará em uma taxa muito mais alta, em virtude do calor do sol. Praticamente nenhum calor do corpo será usado no processo e a pessoa acabará por ficar fortemente desidratada. Este processo é conhecido como insolação. Um dos sintomas da insolação é a febre alta. Como mecanismo de defesa contra a insolação, as pessoas adotam comportamentos defensivos, como beber muita água e procurar um local à sombra. Uma das consequencia da insolação são as queimaduras de pele, que entre outros transtornos, desencadeia um processo inflamatório e prejudica a capacidade da pele de transpirar, piorando o quadro.

Analogamente, a Terra encontra-se com insolação. Mas ao contrário do banhista descuidado, que abusa da exposição ao sol, a Terra encontra-se nesta situação porque temos interferido em seus mecanismos de defesa. A cobertura vegetal, as geleiras e os biomas marinhos são como a pele, com importante participação no controle da temperatura do planeta. Talvez a Terra pudesse suportar uma grande quantidade de CO2 na atmosfera se sua cobertura vegetal e os oceanos estivessem intactos. Como não estão, esta sobrecarga acumulou-se sobre as geleiras.

Esta é a parte do aquecimento global que normalmente não é mencionada. Existe um empenho nos meios de comunicação em mostrar o CO2 resultante da queima de combustíveis fósseis é o único responsável pelo aquecimento global. Dão a impressão que o aquecimento global é o principal, senão único, problema ambiental que enfrentamos. Na verdade, o aquecimento global é apenas a febre. A doença é algo muito mais grave, que pode potencialmente matar o paciente. É triste dizer isso, mas a doença somos nós, os seres humanos, que temos extraido da Terra três vezes mais recursos do que ela seria capaz de repor em sua capacidade máxima. Temos nos portado como gafanhotos na plantação, comendo até o último talo verde.

Numa tentativa de minimizar os efeitos do nosso estilo de vida, muito tem se falado sobre desenvolvimento sustentável. Infelizmente o desenvolvimento sustentável tem sido representado como uma mera ação de compensação. Muitos produtos atualmente apresentam em seus rótulos mensagens como "Este produto teve suas emissões de carbono compensadas com o plantio de árvores", ou "Este produto é ecologicamente sustentável". Estas ações, quando reais, em geral são meros paliativos. Na maioria das vezes, a empresa não adotou alguma ação concreta. simplesmente adquiriu alguns créditos de carbono e continuou a fazer as coisas como sempre fez. Umas poucas empresas adotaram práticas realmente sustentáveis, como o combate ao desperdício, eficiência energética e apoio real a programas ambientais, como o S.O.S. Mata Atlântica. Surprendentemente, essas empresas descobriram que a ação sustentável reduz custos e aumenta os lucros.

Mais uma vez cito o livro "A Vingança de Gaia", do cientista inglês James Lovelock. Tenho lido muito a respeito de mudança climática. Mas somente Lovelock parece ter uma visão estrutural do problema. Uma visão fisiológica. Lovelock fala de maneira convincente sobre a teoria de Gaia, de como a Terra consegue manter a homeostase, ou seja, manter um ambiente extremamente dinâmico e teoricamente instável em equilíbrio. Por conhecer bem esses processos, embora admita que esta é uma área que estamos apenas começando a compreender, ele deixa claro de que maneiras estamos interferindo. E mostra o tamanho do estrago. Estrago este tão grande que, para Lovelock, não basta uma economia sustentável. Para ele é necessária uma retirada sustentável, num paralelo a um exército que bate em retirada quando percebe que não tem como vencer a batalha. Embora fatalista (e às vezes só o discurso fatalista surte efeito), sua opinião tem sido corroborada continuamente por inúmeras pesquisas científicas.

Mas como conciliar uma "retirada sustentável" com a necessidade dos países mais pobres de crescimento? Vivemos uma situação injusta, na qual 10% da população consome 90% dos recursos. O restante da população vive em situações que variam entre a penúria remediada e a miséria extrema. Água encanada e esgoto são luxos que muitos não sabem sequer que existem. Assistência médica então, nem pensar. Essas populações muitas vezes extraem seu sustento da terra sem técnicas adequadas, o que ao mesmo tempo degrada o solo e produz um sustento insuficiente.

Há alguns anos atrás, eu trabalhava fazendo projetos de equipamentos de segurança contra incêndio. Era então um mercado muito concorrido, mas todos os fabricantes ofereciam soluções muito parecidas. Nesta época, um equipamento de alarme de incêndio consumia várias dezenas de Watts. Ninguém parecia se importar muito com isso na época, pois este consumo equivalia a uma ou duas lâmpadas incandescentes acesas. Mas isso me incomodava, pois esses equipamentos precisavam de fontes grandes e baterias pesadas para que pudessem continuar operando mesmo em caso de falta de energia elétrica. Os equipamentos eram grandes, pesados e aqueciam muito. Com um pouco de pesquisa, descobri que já havia no mercado componentes eletrônicos que permitiam projetar equipamentos menores, mais eficientes, com menor consumo e mais confiáveis. Mas eles simplesmente não eram usados, porque o paradigma vigente previa equipamentos pesados e gastadores. Meu primeiro projeto usando estes novos componentes ainda era grande, mas reduziu o consumo a um décimo do equivalente do mercado. Ele era destinado à sede do INPE em Cachoeira Paulista. Acredito que este equipamento encontra-se até hoje em funcionamento. as gerações seguintes de equipamentos tornaram-se mais compactos, confiáveis e energeticamente eficientes. Se eu ainda estivesse atuando na área, sei que hoje seria possível obter resultados ainda melhores. Cito esta história para mostrar que nosso desenvolvimento tecnológico nos levou ao ponto em que podemos ser eficientes. Muito eficientes. Grande parte dos recursos que extraimos da Terra são para a produção de energia. energia usada para transporte, iluminação, aquecimento, refrigeração e para a fabricação dos muitos produtos que usamos. A energia é um recurso precioso. sem ela, seguramente não existiríamos. Sem fontes abundantes de energia, jamais chegaríamos a população de 6 bilhões de pessoas. Todos os bens e recursos de que dispomos dependem direta ou indiretamente de nossas fontes energéticas.

Talvez não precisemos pensar na retirada sustentável da maneira dramática retratada por Lovelock. Talvez seja possível reduzir muito nossa marca no ambiente mudando a maneira como tratamos a energia e os materiais e usando melhor a tecnologia de que dispomos. Aumentar a eficiência energética e dos processos industriais, eliminar o desperdício na fabricação, estocagem, transporte, distribuição e utilização de mercadorias, aumentar a longevidade dos bens de consumo, usar melhor a água e não poluir mananciais, aperfeiçoar as técnicas de construção e utilizar o solo e o espaço urbano de maneira mais racional, tornar obrigatória a reciclagem de 100% do lixo produzido e encerrar a produção de itens que não possam ser reciclados. E bom senso. Bom senso no consumo e utilização. Por que comprar uma TV de 50 polegadas se uma de 32 já entulha a sala? e por que mantê-la ligada quando ninguém esta usando?

Junte a tudo isso a adoção de energias de fontes sustentáveis (eólica, solar, etc), respeitando as limitações ambientais. Usinas hidrelétricas já foram apontadas como grandes fontes de carbono, pois suas represas costumam inundar grandes áreas florestais que, quando submersas, fermentam e emitem CO2 e metano. Um estudo mostrou que algumas usinas hidrelétricas geram mais carbono do que uma termelétrica de potência equivalente. Portanto, não é apenas a adoção de energias renováveis, mas fazê-lo respeitando o ambiente.

É difícil quantificar o peso dessas ações para preservar a Terra e seu delicado sistema de suporte de vida. Minha intuição me diz que ações corretas e bem planejadas podem ser suficientes para reverter o quadro, desde que se abandonem as posições demagógicas, adotando medidas sérias e responsáveis. recentemente, vi uma notícia sobre uma campanha para economizar energia apagando um pixel do monitor do computador. Segundo o autor da campanha, se 1 milhão de pessoas aderissem à campanha, instalando em seus computadores um software que apagaria aleatoriamente um pixel da tela do computador, uma certa  quantidade de energia (alguns milhares de Watts/hora) seriam economizados. Certamente esta campanha não considerou duas coisas: Em primeiro lugar, o software que seria instalado ocuparia espaço em memória e tempo de processamento e provavelmente gastaria mais energia do que aquela obtida com o apagamento do pixel. Em segundo lugar, os monitores modernos são de cristal líquido, com uma iluminação fixa independente dos pixels. Portanto, o apagamento de um pixel não faria diferença nenhuma. Uma diminuição no ajuste de brilho do monitor faria um efeito milhares de vezes maior. Que ninguém se engane. Não serão as pequenas ações que salvarão o planeta, mas as grandes, como diminuir o tempo no chuveiro, usar aquecimento solar, evitar lavar a calçada e o carro desnecessariamente, mudar as janelas da casa por janelas maiores, para não precisar acender lâmpadas durante o dia, usar somente lâmpadas econômicas, evitar a compra de produtos desnecessários, usar álcool no carro mesmo quando a gasolina sai mais barato. E desligar o computador quando não estiver em uso.

Mudar a maneira de pensar e agir das pessoas, empresas e governos pode ser difícil e aparentemente caro, mas todos os que enveredaram por este caminho não tem do que reclamar.

Comentários

  1. Novamente um excelente texto! Embora, eu ainda seja mais pessimista ou fatalista tipo o Lovelock,também mantenho uma esperança, mas é muito difícil acreditar que as mudanças necessárias ocorrerão a tempo de não levar a extinção ou quase extinção da humanidade e de muitas outras espécies.

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  2. Eu ainda acredito que o bom senso vencerá. Mas não tiro a razão do Lovelock. Obrigado.

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