Autonomia dos Veículos Elétricos

Gostaria de fazer um comentário, antes de iniciar o assunto deste post, sobre a criativa "reinvenção da roda" apresentada pela Michelin no último Salão do Automóvel de Franfurt. A matéria completa  está aquí.

Gostei muito da idéia. Só espero que esteja disponível para a indústria a preços viáveis.

Terminei o post anterior afirmando que a limitada autonomia dos veículos elétricos foi a causa de sua não popularização e a consequente ascenção dos veículos a combustão interna. Mas se o motor elétrico é tantas vezes mais eficiente que os a combustão (também conhecidos como térmicos), porque esta limitação ocorre?

A energia elétrica é uma das manifestações mais organizadas que a energia pode assumir na natureza. Talvez a mais organizada. Ela pode ser gerada, transmitida e usada de maneira relativamente simples. Contudo, o seu armazenamento tem sido um desafio desde que a mesma foi descoberta. Isto ocorre em virtude do caráter dinâmico desta forma de energia. Para a melhor compreensão deste fenômeno, discutirei aqui um pouco sobre energia.

Como ja discuti anteriormente, energia representa a capacidade de se realizar trabalho. Esta correspondência entre energia e trabalho é tão grande que, do ponto de vista matemático, costumamos tratar estas duas entidades como equivalentes. Isto porque, se algum trabalho foi realizado, uma certa quantidade de energia foi necessária e a correspondência é exata (mesmo as perdas de energia que um sistema venha a apresentar representam algum trabalho, mesmo que este não seja aproveitável).

Podemos dividir a energia em dois grandes grupos:

Energia Potencial - Representa a energia armazenada de alguma forma, pronta para executar trabalho.
Energia Cinética - Representa a energia que um corpo em movimento possui, e que está associada à sua massa e velocidade.

Um exemplo clássico é a energia potencial gravitacional, que é a energia que um corpo material possui em função de sua posição (altura) em relação ao solo. Imagine um paraquedista que se encontra em um avião, pronto para realizar o seu salto:



Vamos supor que a altura do avião em relação ao solo, no momento do salto, seja de 1000m. Não farei uma demonstração matemática aqui, mas a teoria diz que a energia potencial do paraquedista, em relação ao solo, é dada por:

Ep=mgh

Onde:
Ep= a energia potêncial do paraquedista;
m= a sua massa, que em condições normais de gravidade terrestre corresponde ao seu peso;
g= a aceleração da gravidade próxima a superfície da terra, que é aproximadamente 9,8 m/s².

Como a terra é muito grande, até uns 10 ou 15 km de altura ainda pode-se considerar "próximo" a superfície. Então a altitude do avião não vai afetar de maneira significativa os nossos cálculos.

Uma vez que o paraquedista salta, sua energia potencial começa a ser usada para acelerá-lo para baixo (é o que costumamos chamar de queda livre, ou atração da gravidade). Nesta situação, surge no paraquedista a energia cinética, que é dada por:

Ec=(mv²)/2

Onde:
Ec= é a energia cinética
m= mais uma vez é a massa do paraquedista
v= é a velocidade instantânea do paraquedista. Como ele está em queda, esta velocidade está aumentando a cada instante.

Vamos supor que o peso do paraquedista, incluindo o paraquedas, seja de de 100 quilos (para facilitar as contas). Assim, sua energia potencial será de:

Ep=100x9,8x1000=980000 Joules

Esta energia é suficiente para ferver 3 litros de água a partir dos 25 graus. Não parece muita coisa. mas a partir da comparação entre a enegia potencial inicial do paraquedista (imediatamente antes do salto) e sua energia cinética final, podemos calcular a velocidade que ele atingiria caso se esquecesse de abrir o seu paraquedas. Sabemos que a energia potencial se converte em energia cinética. Portanto a quantidade de energia cinética está limitada pela quantidade de energia potencial disponível. Ou seja;

Ec=Ep=mgh=980000 Joules

mas Ec=(mv²)/2

então  v²=2Ec/m=2x980000/100

v=√(2Ec/m)=140 m/s = 504 km/h


Na prática, o paraquedista nunca atinge esta velocidade, mas por causa do arrasto aerodinâmico, esta velocidade se estabiliza em algo entre 150 e 200 km/h. Mas isso nos dá uma idéia da energia potencial gravitacional e nos ajuda a entender porque não se deve saltar de um avião em vôo sem usar um paraquedas. E na próxima vez que for ferver água, pense na  quantidade de energia que é necessária para fazer algo tão trivial.


Felizmente, nossa preocupação não é ferver água. Mas seria se tivéssemos que usar motores a carvão. É esta dificuldade em ferver a água é que a torna ideal para refrigeração de motores. Então, quando o motor do seu carro ferver, pode estar certo de que há algo muito errado com ele.


Mas o que eu quero ressaltar é a equivalência entre as duas formas de energia, a potencial e a cinética. E a capacidade de ambas como forma de se armazenar energia. E para demonstrar esta capacidade, vamos usar, no lugar do paraquedista, o "Buster", o famoso boneco de testes dos Mithbusters. Se o Buster for lançado do avião a 1000m de altura, e se pudéssemos desprezar o atrito com o ar (não podemos), então ele atingiria o solo a 504 km/h. e ene faria isso com a energia necessária para ferver 3 litros de água. Mas no momento do impacto, a velocidade cai a zero e portanto a energia cinética também cai a zero. Para onde foi esta energia? A Primeira lei da Termodinâmica afirma que esta energia não pode desaparecer, tem que ir para algum lugar. Na verdade, toda esta energia acaba por se transfoarmar em calor. Se houvesse uma maneira de concentrar todo este calor em um único ponto, como por exemplo uma panela contendo 3 litros de água, ela instantaneamente atingiria a fervura. Contudo, esta fervura não se manteria, pois não há mais calor adicional a ser fornecido e a água começaria lentamente a esfriar, ou seja, este calor começaria a ser dissipado no ambiente.


O Calor também é uma forma de energia, assim como a energia cinética do Buster ou uma corrente elétrica. O calor é a energia térmica em trânsito entre dois corpos, ou entre partes diferentes de um mesmo corpo. A energia térmica está associada ao movimento dos átomos e moléculas que compõem um material qualquer. Quanto maior a velocidade destes átomos e moléculas, mais energia cinética eles contém. Como a  quantidade de átomos e moléculas (que a partir de agora chamarei de partículas, mas por favor, não  confunda com as partículas subatômicas) é muito grande, e cada partícula pode se mover em uma direção diferente, acabamos com uma distribuição caótica desta energia pelo corpo. A energia térmica não é muito organizada. Por isso, obter trabalho a partir da energia térmica acaba sendo um pouco complicado e não muito eficiente (em um post futuro, tratarei com mais detalhes as características da energia térmica). Comparativamente, a energia cinética contida em um único corpo em um ambiente livre de atrito é muito mais organizada, e em condições adequadas, esta energia pode ser aproveitada com um alto gra de eficiência. No entanto, manter um único corpo em condições de atrito zero é uma condição relativamente difícil de se obter. Pode-se obter efeito semelhante a partir de um corpo em rotação dentro de uma câmara de vácuo. É mais ou menos assim que a energia é armazenada no sistema KERS utilizado atualmente nos carros de Formula 1.







Quase tão organizada quanto a energia cinética de um único corpo é a energia elétrica. eu digo quase porque esta organização pode ser afetada pela forma como ela é armazenada e distribuida. Os condutores elétricos metálicos oferecem muito pouca resistência a passagem de uma corrente elétrica. Mas esta resistência não é nula. Uma corrente elétrica se estabelece quando dois extremos de um material condutor (por exemplo o cobre ou o alumínio) são submetidos a um campo elétrico (por exemplo, o condutor pode ser conectado ao dois polos de uma pilha elétrica). Quando este campo elétrico é estabelecido, os elétrons mais externos que orbitam nos átomos deste condutor tendem a ser atraidos pelo polo positivo e começam a se deslocar nesta direção. Uma vez que um dos eletrons se desloque, deixa um espaço livre no orbital do átomo, que logo é preenchido por outro elétron. Este processo é muito rápido, mas a quantidade de átomos também é muito grande. Então, se tivéssemos que esperar que um eletron atravessasse toda a extensão do condutor para obter uma corrente, este processo poderia levar alguns segundos. Mas não é isso que se observa. Quando fechamos o circuito, a corrente se estabelece instantaneamente. Isto ocorre porque, ao fechar o circuito, todos os eletrons são simultaneamente submetidos ao campo elétrico e começam a se deslocar de maneira quase  que siultânea. É mais ou memos o que ocorre quando abrimos a água em uma mangueira de jardim: se a mangueira já estiver cheia de água, a mesma começa a jorrar no instante em que a torneira é aberta, pois as moléculas de água empurram umas às outras, estabelecendo o fluxo quase que instantaneamente.







Como já discutimos anteriormente, todos os materiais em temperatura ambiente apresentam um movimento caótico de suas partículas, associado a energia térmica. Chamamos a este movimento de agitação térmica. Esta agitação térmica interfere no movimento dos elétrons em um condutor, dificultando este movimento. Quanto maior a temperatura deste objeto (que é uma forma de medir esta agitação térmica), maior a resistência elétrica deste material. Podemos inferir que se um material for  suficientemente aquecido, mesmo que a temperatura ambiente ele seja um bom condutor, pode se tornar um mau condutor ou mesmo um isolante elétrico. Um isolante é um material cuja condutividade é tão baixa que, para todos os efeitos práticos, pode se considerar que não conduz corrente elétrica. Mas na prática, com raras exceções, esta temperatura seria muito acima do ponto de evaporação destes materiais. Mas se o aumento de temperatura aumenta a resistência, poderiamos esperar que uma diminuição desta temperatura tenha o efeito oposto, melhorando a condutividade elétrica do material. Poderíamos ainda imaginar  que, se abaixarmos o suficiente a temperatura, podemos atingir um ponto em que a condutividade do material seja perfeita, ou seja, sua resistência elétrica seja zero! E isso de fato acontece. Chamamos a este fenômeno se supercondutividade e ele tem inúmeras aplicações tecnológicas e industriais. Em condições adequadas, uma corrente elétrica pode ser aplicada a este supercondutor e esta corrente poderia permanecer circulando indefinidamente.

A partir do que foi discutido, podemos identificar 3 maneiras de se armazenar energia:

Pode-se armazenar energia potencial gravitacional. Isso na prática é feito nas usinas hidrelétricas, Ao invés de se levantar um corpo pesado até uma certa altura e soltá-lo (o que não seria muito prático), constroem-se barragens muito altas, as quais contém grandes quantidades de água represadas. Quanto mais alta a barragem, mais energia pode ser obtida para girar as turbinas e os geradores.




Pode-se armazenar energia cinética. Como já dissemos, este é o método utilizado no sistema KERS da Formula1.

Pode-se também armazenar energia através de surpercondutores. Embora já tenha sido feito em laboratório, não conheço nenhuma aplicação comercial prática que use o princípio, pois o mesmo ainda requer aperfeiçoamentos (caso alguém conheça uma aplicação assim, por favor me informe).




Todas as formas de armazenamento mencionadas  não podem ser diretamente aplicadas a um veículo por serem grandes e volumosas (não consigo imaginar um carro transportando uma usina hidrelétrica), ou ainda não se encontram suficiente amadurecidas tecnologicamente para a aplicação.

O que pode ser feito então?

Obviamente eu não discorrí sobre todas as formas possíveis de armazenamento de energia. E ainda não mencionei a forma mais usual. Refiro-me a energia química.

Para que os átomos que compõem os materias se liguem entre sí, uma certa quantidade de energia é necessária. Algumas substância, como a gasolina, apresentam tanta energia em suas ligações que elas tendem a ser instáveis. Por causa dessa instabilidade podem se combinar facilmente com o oxigênio do ar, liberando grande quantidade de energia térmica no processo.

Os átomos também podem ser eletricamente carregados. Grandes quantidades de átomos carregados podem ser acumulados nos eletrodos das baterias elétricas. Existem diversos tipos de baterias elétricas no mercado. Normalmente as baterias envolvem metais como chumbo, zinco ou níquel, mas também podem usar grafite ou polímeros especiais, plásticos desenvilvidos para a aplicação. As primeiras baterias eram feitas de zinco e cobre, metais que eram consumidos durante o seu funcionamento. essas baterias não podiam ser recarregadas. As pilhas descartáveis que usamos hoje são descendentes diretas destas baterias originais, embora usando outros materiais. Logo ficou clara a necessidade de baterias que pudessem ser recarregadas a partir de uma fonte externa e que não fossem destruidas no processo de descarga. As baterias de chumbo ácidas encontram-se entre as primeiras baterias recarregáveis viáveis e encontram-se em uso até hoje. Possuem grande quantidade de corrente e carga, mas possuem a incômoda limitação de serem muito pesadas. Em termos de energia por peso, o uso de gasolina é muito mais vantajoso do que armazenar energia em baterias. Enquanto a gasolina possui um potencial energético de 12500 Wh/kg (ou 45 MJ/kg, a bateria de chumbo ácida permite armazenar apenas de 25 a 30 Wh/kg ( 90 a 108 KJ/kg), ou seja, aproximadamente 120 vezes menos que a gasolina. Mesmo as modernas baterias de lítio são capazes de armazenar de 3 a 5 vezes mais que as de chumbo. Então se considerarmos apenas a capacidade de armazenar energia (o que é decisivo em termos de alcance para um altomóvel), mesmo que um motor a gasolina apresente uma eficiência de 20%, ainda assim, seu alcance seria 25 vezes maior do que um elétrico. E foi esta diferença que foi decisiva no início da indústria automotiva e que estabeleceu o motor a gasolina como padrão absoluto, desbancando os elétricos.

Esta lógica fazia muito sentido em uma época em que a gasolina era muito barata e simplesmente não havia preocupações ambientais. No entanto, vivemos em uma outra época, onde essas condições sofreram profundas mudanças que começam a viabilizar os veículos elétricos.

No próximo post, continuarei a tratar do problema da autonomia.

Comentários

  1. Carro a eletrolito

    Gostaria pudesse analisar este projeto de veiculo que desenvolvir. Um Hidro-eletrico.

    http://carroaeletrolito.blogspot.com/

    Estou a procura de grupos de pesquisa para testar.

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